sexta-feira, 31 de agosto de 2012


O post de hoje fala sobre a semana de condução de Arlindo Bezerra, e o texto foi escrito com capricho por ele:

O homem em sua natureza primitiva pode revelar as coisas a partir de uma ótica desumanizada.
Iniciei o procedimento de condução muito inseguramente e com o desejo de estar dentro. Não optei por ficar olhando de fora. Fazia questão de participar ativamente o proposto no coletivo. Trouxe a proposta de representar através de uma seleção de expressões manoelescas, todas os enunciados que seja prenhe de uma identificação pessoal para com a obra do Retrato do Artista Quando Coisa, ou que possa ainda partir de outros livros do poeta. Pensando nessa perspectiva, começamos com essa “seleção natural” das terminologias poéticas, e catalogamos tudo em um papel.
Abaixo disponibilizo alguns exemplos de cada seleção individual:
Arlindo – os silêncios me praticam, entorpecer o cheiro do sol, rã me pedra, envesgar seu idioma, achar solidão, ser arrancado de dentro, olhar para baixo, entrar em estado de árvore, predicados de uma lata, memórias fósseis, des-heróis, incompletude, sossego de uma pedra, milagre estético, não use o traço acostumado, limpeza de um verso...
Luana – liberdade, coisas celestiais e coisas ínfimas, morrer é uma coisa indestrutível, sair entorpecido de haver-se, que hei de fazer? Artista!!! Substantivo escuro escorrendo, dores, limites, derrotas, experimento o gozo, coroa de flores,a noite, paz calmaria contentamento...
Paulinha –retrato, cristianizar, bulir, lixo, senso, adoecer, esgarçar, retrato do artista, trocar as árvores, ser coisa, germinar, brotar, desfrutar, bicho, pensamentos, perfumes, entontecer, esvaziar-se, ventania, vendaval, invenção, desejo, vento bom na janela, corpo solitário no brilho da lua, desobjeto artístico, brincar no quintal, carrapicho, rios riosriosrios, sem vergonhas, ferrolho quebrado feito para não servir...
Rodrigo Silbat – coisa, trocar as árvores, desempenho, dom de latas, velha, olho, predomínio por lírios, desejam a minha boca, cristianizar as águas, cheiro do sol, limites, deslimites, largado no chão, corromper, me pedra, manhãs, os jardins se borboletam, cio vegetal, envesgar, ter chuva, entorpecer...
Após essa etapa, passamos para um momento de criação de painéis individuais a partir do material que cada um havia levantado. Funcionava assim: Luana transcrevia para um papel na parede a seleção das expressões selecionadas por Silbat, e assim por diante. Cada um desenhava a representação do material que o outro havia elencado.
Segue abaixo o painel que contemplava os termos do outro naquele momento do exercício:
Painel das expressões de Arlindo feito por Paulinha:


Painel das expressões de Paulinha feito por Silbat:


Painel das expressões de Silbat feito por Luana:


Painel das expressões de Luana feito por Arlindo:


Na etapa final do trabalho passamos para um exercício de despir-se diante do painel que representava cada um. A proposta do trabalho, era expor o homem frente às questões que o tocam individualmente, e em seguida realizamos uma improvisação nesse ato de desnudamento. Considerando Manoel de Barros, encerramos o trabalho nús de nossas derrotas, limites e fraquezas.
Tais terminologias escolhida “ao acaso” por cada um, pôde revelar particularidades muito específicas de cada indivíduo dentro do processo.
E ainda podemos perceber como cada um possui uma qualidade de representação do outro, a partir dos estímulos que são oferecidos. É muito curioso ver a leitura que o outro tem de sí.
O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê. (Manoel de Barros).
Na sequência do meu trabalho, no segundo dia condução, começamos passando por um momento de representação no corpo inspirados na construção dos painéis individuais do dia anterior. A proposta era que todas as representações individuais pudessem se contaminar pelo outro. E então, começamos a colorir o corpo, usar os traços, e estabelecer uma relação com o outro a partir dessa criação. Fazer surgir um corpo-coisa-sujeito-homem-desumano. O trabalho foi conduzido ao som da trilha sonora do disco “Recanto” da Gal Costa e alguns álbuns do Yann Tiersen. A partir dessas relações pudemos construir narrativas-dramatúrgicas- corporais de relevante significação. Paulinha se relacionou com Silbat e eu com Luana. Esse gráfico de relação pôde ser percebido mais conscientemente no trabalho na chegada do Zé Walter que considerou apontamentos que irei expor em outro momento. Encerrei o trabalho insatisfeito, saí com a sensação de que não consegui chegar aonde desejava.  Mas acreditava que amanhã seria outro dia. E foi...
Este seria meu último dia de condução individual do processo. Começamos em um ritual de encontro que fomos descobrindo lentamente, e até hoje tem nos revelado muito. Logo no início, expus a proposta do trabalho para aquele dia. O que haveria de diferente do dia anterior, seria apenas o direcionamento para algumas figuras (corpo-coisa-ser-objeto-desobjeto), e a liberdade improvisacional que essas imagens pudessem redimensionar. Então, pensando nisso, iniciamos do rito de encontro dos corpos, e fomos experimentando o contato e improvisação de nós quatro nus, totalmente despidos no centro do espaço de trabalho. Esse estímulo inicial foi nos levando para uma experiência laboratorial muito profunda, surgiram imagens poéticas lindas... Dentro do próprio exercício, consegui sair do laboratório e retornar por vários momentos. A força Dionísiaca estava muito latente neste dia. O trabalho teve vários momentos de êxtase coletiva – O estupro colorido (quando Silbat jogou Luana na parede e gerou uma imagem linda da agressão), a pintura coletiva dos painéis (quando nós quatro transfiguramos termos poéticos da obra Manoelesca) e por fim, o mergulho no monte de barro (quando Paulinha, Silbat e eu, nos jogamos no barro e experimentamos a queda e a textura da matéria do barro no corpo). Este último momento trouxe a natureza primitiva muito forte para experiência daquele dia. Foi revelador... Corpos nus que materializam ancestralidades!
            Faço relação dessa experiência com o vídeo “Sangue Latino” do Eduardo Galeano que o Odilon deixou de presente naquele primeiro momento.
“Não existem dois fogos iguais, cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Existem fogos grandes e fogos pequenos, e fogos de todas as cores. Existe gente de fogo sereno que nem fica sabendo do vento e existe gente de fogo louco, que enche o ar de faíscas. Alguns fogos são bobos, não iluminam nem queimam. Mas outros... outros ardem a vida com tanta vontade, que não se pode olhá-los sem pestanejar, e quem se aproxima se incendeia”
Eduardo Galeno.


por Arlindo Bezerra.








quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Ilhas poéticas e loucuras


Como Paulinha explicou no post anterior, estamos agora num momento do processo em que cada ator tem uma rodada de condução. Isto é, cada ator tem três dias para conduzir os ensaios como quiser, com suas visões e desejos para a encenação.
Tendo muito apreciado as Ilhas introduzidas por Paulinha, quis continuar trabalhando com elas. Mas sentia que improvisávamos sempre muitas ações e imagens, enquanto os poemas parcamente eram trazidos à tona. Por isso (e por ter uma relação especial com as palavras, uma vez que sempre gostei muito de ler e escrever), escolhi trabalhar não mais com Ilhas de ações manoelescas, mas com Ilhas Poéticas. Cada ilha era um poema, e necessitava de ser habitada por um corpo.
Assim, os primeiros dois dias de trabalho consistiram em encontrar maneiras de habitar essas ilhas e dar voz a elas. Começávamos sempre com um aquecimento com View Points, que permitia aos corpos dos atores explorarem o espaço e descobrirem as ilhas, lê-las, respirá-las. Os desobjetos que temos usado, por sua vez, ficavam empilhados numa grande ilha central, esperando. Então os atores podiam transmutar-se em corpos-coisa (isto é, vestir, transformar, subverter e ressignificar os desobjetos) e habitar as ilhas com esses corpos-coisa.
Os atores eram estimulados a darem voz a esses corpos, voz esta que não precisava necessariamente ser entendível, mas que precisava sair, ganhar espaço, atuar no tempo, ressoar no espectador. O resultado foi uma loucura sonora e visual. Uma loucura incrível!
No terceiro dia, elegi imagens e ações e coisas que os atores tinham feito durante as improvisações e que pessoalmente me interessaram (eu as tinha anotado febrilmente no meu caderno) e brinquei de encenadora - juntando imagens, criando cenas, propondo relações. Pra mim, que estava de fora, foi maravilhoso – um vislumbre das possibilidades de como essas criaturas-corpos-coisas que estamos criando podem ir para a cena.
A loucura maior é que tudo pode ir para cena! Sujeitos esmolambados, borboletas que apanham pra voar, germinações de inércia, aprendizes de abelhas mais que aeroplanos, simpatizantes de Fellini, des-heróis de Callais, cantadores de borboletas, casulos dançantes... tudo! 






quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O arquipélago de ser inútil

Olá, parceiros de bordo!

Hoje a postagem é destinada a compartilhar a primeira parte de um processo de condução dos laboratórios de criação do Retrato pelos próprios atores. A proposta é antiga, está entre nós desde a vinda de Odilon, e enfim a estamos colocando em prática. A primeira atriz a conduzir o processo foi a Paulinha - eu - que teve como estímulo uma provocação feita pelo nosso assistente de direção Alex Cordeiro: criar "imagens que calam". Essa primeira parte das conduções teve duração de três dias, mas os materiais levantados continuam sendo trabalhados.

Agora, falando em primeira pessoa, confesso que a palavra "condução" sempre me gera uma mistura difícil de sentimentos. Ansiedade, preocupação e curiosidade, são bons exemplos do que sinto. E dessa vez não foi diferente. Mas me peguei em Manoel e na confiança que tenho em meus parceiros e preparei o trabalho com muito carinho.

Movida pelo estímulo "imagens que calam" e por uma recente experiência com rasaboxes, propus aos meninos uma experimentação em um quadro de ser inútil - que mais tarde passou a se chamar arquipélago. O quadro era composto por nove ações manoelescas - como "olhar de azul", "usar um deformante para a voz" - e, ao ser adentrado, deveria ser investigado sem pudor e sem racionalização, utilizando o corpo, a respiração e a caixinha de surpresas que é a imaginação de cada um. Após essa primeira investigação, foi o momento de preencher o quadro com os nossos objetos de descarte e utilizá-los junto às ações manoelescas.

Sem pretensão, percebi que tinha descoberto uma ferramenta muito potente de criação. Além de provocar estados bastante interessantes nos corpos dos meninos, o quadro de ações junto aos objetos era um verdadeiro núcleo de parimento de criaturas manoelescas. Criaturas estranhas, carismáticas, enigmáticas e feitas de poesia pura!


       Me debrucei sobre essa descoberta e continuamos construindo essas criaturas até hoje. Criaturas que brotam do descarte, das páginas de Manoel e reinam absolutas no arquipélago de ser inútil. 

Paulinha.
     



quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Os corpos, os desobjetos e as dúvidas


Hoje o assunto é Claúdio Dias! Um dos nossos diretores da Luna Lunera Cia. de Teatro, de BH.
Para ler esse post, recomendo esta música, que nos moveu durante a semana de trabalho com o Cláudio: http://www.youtube.com/watch?v=1lgwmbr3dNs
Tão curtinha a música – assim como o tempo compartilhado juntos. Curto, porém cheio de graça e extremamente proveitoso. Com o Claúdio, um dos nosssos maiores desbravamentos foi o corpo, o corpo que pode ser corpo-palavra, corpo-imagem, corpo-ser, o corpo que compõe as palavras, que dá vida a elas.
O Cláudio nos movimentou, colocou holofotes da nossa frente e fez nossos corpos virarem poemas por si só, na cena. É muito importante sabermos mobilizar nossos corpos (nós, em nossa inteireza) dentro do trabalho, encontrar nossas verdades e agir segundo elas. Sinto que este trabalho, mais que qualquer outro, por ser nosso retrato, tem que estar em consonância com nossos corpos, que é afinal quem nós somos. As nossas vozes, mesmo que contaminados com a do Manoel, cheias das palavras do Manoel, apaixonadas pelas imagens do Manoel, só podem sair da nossa boca, segundo a nossa saliva, nosso entendimento, nossa força.
 Em termos de treinamento, o Claúdio introduziu para nós os View Points e o Contato e Improvisação, que temos continuado trabalhando até os ensaios mais recentes.
Outra coisa muito importante, e que vem sendo determinante nos últimos ensaios, é a questão introduzida por Cláudio sobre os objetos, ou os desobjetos. Manoel fala muito do cisco, das coisinhas miúdas, das coisas do chão, das coisas pertencidas de abandono. O Cláudio pediu que trouxéssemos esses objetos. Objetos nossos, de descarte. A partir deles, inventamos um milhão de coisas mais. “Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça. Sou capaz de inventar um lagarto a partir de uma pedra. (...) Experimento o gozo de criar. Experimento o gozo de Deus.” Enquanto artistas, foi isso que fizemos.
Nesse sentido, o trabalho do Cláudio se aproximou muito (e de uma forma que não havia sido planejada previamente) com o trabalho de Alex Cordeiro, nosso assistente de direção. Sincronia!
Cláudio alertou também para o fato de que daqui a pouco teremos de começar a fazer escolhas: dentre as mil possibilidades que o retrato oferece, quais seguiremos? Quais aprofundaremos?
Hoje concluímos com a dúvida.




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