quarta-feira, 18 de julho de 2012

Do olho que vê à cena que transvê


Vamo começar com poesia?

“A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um
formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo
Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall
Agora é so puxar o alarme do silêncio que saio por aí a desformar.”

(Manoel de Barros)

E não é por acaso que começamos com esta aí de cima. Foi ela que orientou um dia muito proveitoso de trabalho, conduzido por Paula Vanina, nossa diretora de arte. É desse dia que estou prestes a contar um pouco aqui, revelar os procedimentos, mostrar como fomos do olhar para a cena.
Este trecho específico do poema foi o impulso para o trabalho: “A arte não tem pensa: o olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.” Por isso nos guiamos, com isso nos deslumbramos – como com praticamente tudo que vem do Manoel.
“A arte não tem pensa” valia para o trabalho como um todo. Vale pra vida como um todo!, creio eu. É tesouro que vale pra artista tatuar e se impedir de esquecer – preciosidade pra incrustar na pele, pra guardar no coração, pra acompanhar pelos caminhos, tipo escapulário. “A arte não tem pensa” é libertação. E eu, pessoalmente, sou bastante dada a libertações!
Antes que comece a divagar demais, vamos lá: a primeira parte do trabalho tinha como orientação “o olho vê”. Para tanto, construímos um caleidoscópio.  Bastou uma réguas, umas miçangas, papel celofane picado, papel alumínio, papel filme, fita adesiva e tchanrám! Cada um com seu caleidoscópio.
Passamos um tempo usufruindo da nossa criação: vendo coisas, descobrindo outras maneiras de ver, colocando-o contra esta ou aquela luz. E íamos anotando – mentalmente ou papelmente- tudo o que víamos.
Passamos então pra segunda parte, que tinha como orientação “a lembrança revê”. Tínhamos lápis de cor, tintas, pincéis. Devíamos rever com a lembrança o que tínhamos visto dentro do caleidoscópio, e transpor pro papel em forma de desenho – tínhamos lápis de cor, giz de cera, tintas, aquarelas. Eu, pessoalmente, me perdi e me encontrei aquarelando – às vezes a gente esquece como é bom desenhar, pintar, se dar esse luxo que parece coisa de criança.
Na terceira parte, deveríamos nos orientar por “a imaginação transvê.” Tínhamos de transformar nossa lembrança pela imaginação, atuar artista. isto é, devíamos elaborar uma história (inspirado por tudo que havíamos visto e revisto) e mostrá-la enquanto cena pra os colegalindos.
Todas as cenas foram bem diferente uma das outras. Que bom, prova de riqueza. É muito animador ver as cenas dos outros. Dá vontade de bis, de mais, de saber pra onde esse espetáculo ta indo. Dá um friozinho bom na barriga. Minha ansiedade explode em excitação e empolgação.
O trabalho foi lindo, singelo – rico na singeleza. Obrigada, queridos colegas, que o possibilitaram ser assim! 

Lua

P.S.: A seguir, algumas fotografias feitas por Paulinha em exercício de transver o próprio quarto.





(Sou capaz de criar uma gaivota a partir de uma lâmpada - Retrato Caleidoscópico 01)



(Sou capaz de criar uma borboleta e uma girafa a partir de uma dobradiça - Retratos Caleidoscópicos 02 e 03)



(Sou capaz de criar um andarilho a partir de um ferrolho - Retrato Caleidoscópico 04)



(Sou capaz de criar um arrebol a partir da luminosidade no teto - Retrato Caleidoscópico 05)



(Sou capaz de criar guarda-chuvas a partir de um caleidoscópio - Retrato Caleidoscópico 06)







sexta-feira, 13 de julho de 2012

Retrato, Artista, Coisa


Hoje tem post com texto do nosso querido assistente de direção sobre o dia de trabalho que ele conduziu, o mesmo dia narrado no post "A procura e o gozo de criar". Lá vai:


"Tinha em mente propor algo que mexesse de forma direta com a criatividade dos meninos. Que os fizessem construir coisas passíveis a teatralização, e que surgissem de alguma maneira, do lixo, isso mesmo, do descarte alheio!
É uma tentativa de voltar o olhar dos atores e dos espectadores para a redondeza do lugar, para o entorno que ambos no ato cênico, habitam... Penso que nós perdemos a capacidade observar poesia no cotidiano, quero com isso, estimular o olhar “torto do poeta”, nos espectadores, fazendo-os intencionalmente, descobrir os lugares, não pelo que está no campo de visão do horizonte, mas do que está no chão. Voltar o olhar para baixo! Para despertar o olhar do descarte! De modo que, cada elemento do cenário, fosse construído aos olhos do espectador. Penso que assim reforçamos objetivamente uma das provocações de Manoel de Barros: “transver o mundo” a partir dos objetos que estão largados em quintais, calçadas, ruelas... Quero valorizar o abandono e de quebra, trazer o espectador para perto.
É um mergulho arriscado, que busca diálogo com formas performativas e estados variados de presença do ator e do espectador. Quero estimular nos atores a construção de imagens fortes, que provoquem admiração no público. E acreditem, toda essa ousadia surgiu depois que tive contato com um poeta brasileiro que se autointitula “vagabundo das palavras”. E que palavras! Elas têm o poder de despertar o nosso interesse por latas, por paredes rachadas, por céu e por objetos que repousam abandonados. Elas – as palavras - nos fazem querer experimentar, por um instante que seja a inutilidade (ou seria super utilidade?) de sermos vagueadores da cena... Vagabundantes do teatro... Criadorantes de poesia do nada. 
Este mesmo poeta fez a nós artistas uma bela homenagem, ao batizar um dos seus livros com o nome “Retrato do artista quando coisa”. Olha que louco e sublime esse gesto, é muita genialidade numa pessoa só, que conseguiu em uma frase juntar três palavras tão primordiais para a nossa criação: Retrato, que guardam as nossas imagens, os nossos afetos, os lugares que passamos (ou mesmo os que nunca visitamos de verdade, mas que de tão belos e nítidos, nos fazem querer estar lá), o nosso passado, ou que revelam aquilo que não queremos registrar (um defeito no corpo, uma roupa descuidada, enfim, um não querer). Artista, ou nós mesmos, que em momentos, nos movemos pelas cidades em uma frequência diferenciada, que olhamos o mundo com uma lente especial, que enxergamos beleza no lixo, no descartável, na parede em branco, enfim, somos obcecados pela comunicação artística! E... Coisa... Ah, as coisas. Diria que a coisa é o nosso alimento, motor de partida para as inquietações. Nos encantamos quando enxergamos uma coisa. Nós sentimos coisa dentro do corpo! Nós fazemos coisas, que assim como o retrato, revelam que toda sociedade, apesar de não reconhecer, precisa de artista! De artistas coisados, criadores de iluminuras, de desobjetos, de não lógicas, de uma linguagem que se organiza a partir de vários vetores, que não questiona o caminho, que se arrisca a cruzar a fronteira e a pular o muro... Que busca o proibido, não por birra, mas por curiosidade. Artistas crianças! Que são capazes de construir um arsenal de guerra com folhas de árvores, tampinhas de garrafa, caixas de papelão, gravetos, cuspe, chinelo velho, casca de ovo, pedra, espiga de milho, arame, hélice de ventilador, cadarço, pregador de roupa... Enfim, verdadeiros cientistas do encantamento, insatisfeitos com a infinitude das coisas e que acreditam que a palavra tudo, carrega na vida do artista, o significado de ser e fazer tudo, para isso, basta uma imaginação permissiva, criatividade para aflorar e a coragem de desbravar!
Alex Cordeiro."

quinta-feira, 12 de julho de 2012

A procura e o gozo de criar


Esse post era pra ter saído ontem, mas hoje sai, e sai sorrindo!

Hoje vamos falar de procura, entre outras mil coisas subjacentes. Começaremos citando Arlindo Bezerra: “Me sinto um artista procurando, preciso me posicionar, expurgar, romper barreiras, transbordar... E agora quero apenas a incompletude... ‘Nesse ponto sou abastado...’” - como diria Manoel de Barros.
É claro que este processo é procura, é busca, é revirar baú velho, remexer as entranhas, olhar pra baixo. Este post se dedicará a um dia de trabalho que começou explicitando a procura e terminou no gozo de criar, um dia de trabalho maravilhosamente pensado e conduzido pelo nosso assistente de direção Alex Cordeiro.
Paulinha conta: “Iniciamos o trabalho com dois momentos de contemplação. O primeiro, feito individualmente em um horário qualquer do dia, um momento só para contemplar – momento pedido por Alex, que devíamos trazer como memória e material para o trabalho a ser desenvolvido no ensaio.
O segundo momento de contemplação foi coletivo. Alex nos convidou a sentar em um banquinho na lateral do Barracão dos Clowns (onde carinhosamente ensaiamos) para olharmos o céu. Simplesmente contemplarmos o azul escuro e luminoso daquela noite de vento bom. Contemplamos o céu, conversamos com as estrelas e até discutimos sobre suas cores, sobre a rotação da terra e rimos gostoso. Dentro de pouco tempo. Tempo suficiente.”
Depois de aquecidos pela contemplação, recebemos uma carta que nos convidava a um jogo. Um jogo de procura. Tínhamos de catar pequenezas do chão. Levamos pro Barracão um sem número de desobjetos. Sem número não só porque eram muitos, mas também e principalmente porque eram infinitos de possibilidades.
Dentro do Barracão, nos foi pedido que ressignificássemos os desobjetos. Fiz tanta coisa que nem sei. Fui tanta coisa que me encontrei me perdendo. Fiz tanta coisa virar outra que a ordem do mundo inteiro se tornou de cabeça pra baixo, e eu podia mexer nela tal como criança mexe nas coisas: com total domínio sobre elas, com imaginação.
Nesse império do cisco, o que pra alguns é só um pedaço de pau vira bengala num piscar de olhos, e mais: tem poder até de envelhecer o corpo. Depois a bengala vira remo, e de repente o corpo é jovem de novo, pronto pra desbravar uns mares ou uns rios escuros, depende da vontade de quem configura as coisas com a imaginação onipotente. Ser onipotente é coisa de Deus. “Experimento o gozo de criar. Experimento o gozo de Deus.” – diria Manoel de Barros.
Depois desse momento individual de ressignificar os desobjetos, nos foi pedido que construíssemos em conjunto uma cena. O lúdico estava muito perto, então optamos por dormir e acordar criança. Aaaah, brincamos. Brincamos tanto que é até difícil descrever. Tinha que tá lá, brincando com a gente, pra saber. Brincadeira é vivência, não é narração, não senhor. O que posso contar é que brincamos de gato mia, de esconde esconde, de monstro. Morri de medo do monstro! De verdade. Teve uma hora que o monstro me pegou e me matou, mas depois ressuscitei. Depois o monstro me pegou e acabei virando monstro também... Bom, acontece né.
Às vezes a gente é flor, às vezes a gente é monstro. Procurando, tudo se pode encontrar. Encontrando, tudo se pode gozar.


Lua

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Encontros na Ilha Desconhecida


Demorou, mas chegou: aqui vem o segundo post do Retrato do Processo, que a partir de agora andará mais movimentado! Já temos muita coisa acontecendo, mas aqui começaremos pelo começo, para que quem tenha interesse em compartilhar conosco o processo se sinta incluído e entendido nos assuntos.
Como já dito no post carinhosamente intitulado “Desvirginação”, temos como marco oficial do início do processo a vinda do Odilon Esteves, do Luna Lunera, que está nos dirigindo. Claro que o projeto já vinha sendo gerado, mas após a vinda do Odilon tudo se intensificou.
Da boca do Odilon saíam pérolas a todo instante. Paulinha conta:  “Tentei coletar a maioria para guardar comigo. Dentre elas, ficou muito forte: estamos nos ‘alfabetizando’ em Manoel de Barros e em seu idioleto. É fantástico! Tão bonito... foi exatamente o que aconteceu.”
Foi tempo pouco para encontros muitos, para esse tudo que aconteceu tão lindamente. Segundo ainda as palavras da atriz Paulinha Medeiros “Foi um encontro lindo, dos mais lindos que já vivi. Voltamos à peraltagem, às feridas, às glórias e nos conectamos com criaturas e energias que vivem em um universo diferente... um universo simbólico, precioso, mítico, poético, poderoso, singular. Acho que eu nunca me senti tão tocada por um processo e, confesso, fico com um pouco de medo. Mas não é um medo ruim, é um medo assim... muito particular. É que tudo está acontecendo de um jeito tão lindo e intenso que eu me pergunto se é possível trabalhar sentindo tanta delícia. (...) Uma escolha muito abençoada essa nossa de ir ao encontro do outro. E a palavra é essa mesmo: encontro,encontro, encontro, encontro..."       
Tenho certeza que essa fala de Paulinha é uma fala de todos do Bololô! E olha que é difícil ter certezas nessa vida. Para contar um pouco mais da maravilha que foi o encontro com Odilon, para caminhar um pouco sobre Ilha Desconhecida que ele era, segue o texto abaixo, escrito por Alex Cordeiro, nosso assistente de direção.

“A ilha Desconhecida, ou, Odilon.
Em estado de silêncio, talvez tenha sido essa a sensação exata que tomou parte do meu ser, durante a primeira semana de trabalho do Retrato. Odilon cativou a todos com seu jeito manso de falar, e afetuoso de agir. Mesmo estando eu, antes de sua chegada, um pouco ansioso com o desconhecido que ele representava, tinha a intuição de que iria encontrar um indivíduo, que a partir de suas ações, iria expor a riqueza e a diversidade do fazer teatral produzido nas salas de ensaios dos grupos de teatro do Brasil, e nesse caso, do próprio Luna Lunera.
No primeiro dia de encontro eis que fui apresentado ao modo Odilon de conduzir um processo. Tudo começou em uma roda, formada por todos da equipe, com o objetivo puro e simples de conversar. Gastamos seis horas trabalhando um dos princípios básicos do teatro de nosso tempo: a comunicação pura e simples através da palavra, do diálogo. Isso mesmo, conversamos incansavelmente sobre o universo de Manoel de Barros, da Bololô, do Luna... Sobre cada um de nós. Sendo que uma de suas impressões sobre a obra do Manoel de Barros chamou a minha atenção. Disse ele “A obra do Manoel de Barros nos aproxima das coisas abandonadas e nosso desafio é fazer o público perceber essa aproximação”.  
Como assistente de direção, fiquei encasquetado com essa provocação. A poesia do Manoel me faz perceber beleza nos objetos desprezíveis... Mas as palavras do Odilon potencializaram meu olhar como encenador. Este trabalho parte de um livro que apesar de se constituir totalmente de palavras, tem nos espaços em branco, um forte poder imagético. E é nesse lugar branco que se esconde as possíveis cenas do nosso espetáculo. (...) E na minha função, Odilon contribuiu dizendo: meninos, a sensação para quem está observando tudo de fora é de empréstimo! Empreste seu olhar a todos, aos atores, ao iluminador, ao público!
O meu primeiro encontro com o Odilon, deixou um aprendizado para a minha jovem carreira de encenador: é importante escutar o outro, a sua equipe, pois esta constrói ao longo de sua trajetória artística, um leque de impressões. Odilon tinha curiosidade em saber quais espetáculos haviam nos deixado com sensação de proximidade, que cenas, que cores, que palavras ditas no teatro nos deixavam calados, emocionados, acreditando que este seria um caminho possível para a nossa própria criação.  Ele tinha curiosidade em saber quem éramos nós, não para imprimir um discurso autoritário de trabalho, mas para fazer com que nós encontrássemos as rotas possíveis para a jornada que se iniciara.
O mais curioso desse meu encontro com ele, foi perceber que o desconhecido que ele representava no início, caiu por terra, pois sete dias de trabalho depois “Odilonzim”, como carinhosamente o chamávamos, revelou-se um jovem ávido por novas experiências, assim como os jovens atores da Bololô, assim como eu sou.
Como diria o Saramago: “quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu, quando nela estiver” e agora que estou na ilha do Odilon, que também pode se chamar Luna Lunera, e sabendo que os princípios que a regem (comprometimento com a pesquisa, valorização do diálogo, criação compartilhada e afeto na diferença) também estão presentes na Ilha que eu habito: a ilha Bololô.